quarta-feira, 8 de junho de 2011

PASSAGEM DAS HORAS

Foi mais ou menos assim que passamos algumas horas do final de semana.

As palavras são fragmentos do texto Passagem das Horas, de Fernando Pessoa.



"Trago dentro do meu coração,
como num cofre que não se pode fechar de cheio,
todos os lugares onde estive,
todos os portos a que cheguei,
todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
ou de tombadilhos, sonhando,
e tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.



Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir.




Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
a vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
a dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas.




Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo.


Sentir tudo de todas as maneiras,
viver tudo de todos os lados,
ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo.
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.



Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento.
Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!
Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
e todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim...
Meu coração tribunal, meu coração mercado, meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
meu coração rendez-vous de toda a humanidade,
meu coração banco de jardim público, hospedaria, estalagem,calabouço, número, qualquer coisa.
Meu coração clube, sala ,platéia, capacho, guichet, portaló,
ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial.
Meu coração postigo.
Meu coração encomenda.
Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
Meu coração a margem, o limite, a súmula, o índice.



Obter tudo por suficiência divina-
as vésperas, os consentimentos, os avisos,
as coisas belas da vida-
O talento, a virtude, a impunidade,
a tendência para acompanhar os outros a casa.
A situação de passageiro,
a convivência em embarcar já para ter lugar.
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase...



Sentir tudo de todas as maneiras,
ter todas as opiniões,
ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito.
E amar as coisas como Deus.


E há um só caminho para a vida, que é a vida...



Das terrasses de todos os cafés de todas as cidades
acessíveis à imaginação.
Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer,
pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira,
nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi.


Fui educado pela Imaginação,
viajei pela mão dela sempre.
Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso.
E todos os dias têm essa janela por diante.



Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo....

  

Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha...


A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna,
a mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso.


Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.
Todas as auroras raiam no mesmo lugar:
Infinito...


Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas,
cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas,
cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas...


Clarim claro da manhã ao fundo
do semicírculo frio do horizonte.
... para além de onde as cores são visíveis...


Leve arrepio matutino na alegria de viver...


Inevitavelmente vital,



Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático...


O chão no ar o sol por baixo dos pés...


Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!



Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,



Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,



Cavalgada voo,


Cavalgada seta,


Cavalgada pensamento relâmpago,


Cavalgada eu,


Cavalgada eu,


Cavalgada o universo-eu.


Meu ser elástico,


mola,


agulha,


trepidação..."











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