UMA OUTRA VIAGEM

Sou do tempo em que viajar era uma saga, um misto de desbravamento bandeirante e peregrinação religiosa...

E veja bem, não falo de nenhum lugar exótico em algum recôncavo escondido do mundo; a saber, acho que esses lugares nem existiam; em minha fantasia, eles foram criados e gentilmente ofertados com o advento da internet.

Falo de longas e intermináveis viagens à São Roque (rumo ao sítio de meu avô), falo de viagens de férias com destino ao interior de São Paulo, e falo também de viagens litorâneas a caminho de São Vicente para o encontro com tios e primos e delicioso direito à banhos de mangueira num fim da tarde em pleno quintal!

Em São Vicente, a história começava no "tentar" ligar. Sou do tempo em que precisávamos de um auxílio da telefonista para isso, e era quase uma incógnita o quanto isso iria durar. Caso a sorte ajudasse, devidamente comunicada nossa intenção, seguíamos viagem...

Bastavam algumas mochilas, o que nos dava a garantia de que poderíamos seguir tranquilamente a viagem no "chiqueirinho" da Brasília de meu pai, ora brigando ora apreciando o céu conforme o cansaço da viagem ia abatendo a mim e a meu irmão.

Não se usava cintos e íamos ao sabor das curvas, balançando atrás do carro; se diversão ou atracamento, como já disse, dependia do humor ou do cansaço que nos assolava no momento.

Filas intermináveis, horas e horas dentro do carro e para mim, o luxo de ser servida pelo que só mais tarde viria a ser conhecido como "drive in": ambulantes nos serviam pelos vidros do carro água, amendoim, cocada, com suas bandejas prateadas brilhando ao sol, atrás de pais ávidos por aplacar o ânimo exaltado dos filhos, nem que fosse por 5 minutos, tempo de duração da apreciação da malfadada iguaria. Ah! e por sorte, nasci antes da gordura trans; do politicamente correto; escolhíamos a cocada por um crivo especialíssimo de mamãe a bandeja mais brilhante e o pano de prato mais branco que a envolvia seriam por certo, as vencedoras. Espécie de código de ética de donas de casa, capazes de saber das intenções da outra a partir do primor com que cerceava seu produto.

E seguia-se em horas intermináveis, onde tínhamos a oportunidade de ficarmos realmente unidos. Ouvir a fita cassete de papai, o som impuro era ignorado porque nas partes "mastigadas" da fita dado o uso, nós mesmos cedíamos gentilmente a voz. E conversávamos, e ouvíamos as regras de mamãe sobre como se comportar na casa da tia, com os primos e principalmente no mar. Fita mastigada, a rádio não pegava... ouvíamos a voz do carro, a saber de nossos pais, de nossas vontades, de nossa ordem interna ou externa a seguir pelo mundo.

Do outro lado da serra uma família nos aguardava, sem o auxílio do celular, de telefones, de qualquer possibilidade de algum sinal de vida nenhuma atenção era dada pelo caminho. A viagem era assim uma saga, também lá, do outro lado, para meus tios e primos. O quanto demoráramos era medido pela quantidade de gente que nos aguardava fora da casa, no jardim e no portão ávidos pela presença e não por notícias como hoje seria. Sou honradamente do tempo em que o importante era a presença, hj basta que se dê notícias, e quer saber? agora, com tantas possibilidades usamos bem poucas e somos menos eficientes do que nos tempos dos abraços...

E assim chegávamos e já seguíamos para praia, sem cinto no carro, sem protetor solar na praia, seguíamos felizes nosso destino querido.

Assim também era viajar pra qualquer lugar do interior.

Do carro da frente, que seguia meus tios e primos, mesmo sem auxílio de celulares, a comunicação se dava a cada parada para o banheiro em alguns poucos postos da estrada, e seguia embora parca mas ainda assim eficiente, graças a vivacidade de meu primo a partir de seu carro.

Eram cartazes, aviõezinhos que saíam pela janela amarrados em barbantes, que quase nos alcançavam. Eram caretas grudadas no vidro de trás ou gestos violentos em que víamos que as coisas entre minha prima e ele não andavam lá muito bem. As possibilidades de comunicação eram poucas ao passo que a criatividade era proporcionalmente gigante, e assim seguíamos viagem, sempre atrás do carro de meu tio, porque se ultrapassássemos minha prima chorava por seu pai não ser o campeão (certamente imaginário, das corridas de sua ficção). Mas seguíamos cerceados de muita informação e ávidos pelo próximo posto de gasolina onde os pães de queijo e filas intermináveis no banheiro nos reuniriam novamente. A viagem se fazia no trajeto e o destino era sempre um luxo à parte.

Hoje, com cinto, carro equipado com som, i pod, i pad, air bag, celular, gps...chegamos em segundos e avisamos a tempo de abrirem o portão para nos aguardar. Minha filha deve pensar que pela duração da viagem, o quintal da casa de seus avós no Guarujá deve ser quase extensão de nosso apartamento, dada a proximidade. Quanto a mim, muitas muitas vezes, olho o trajeto e procuro o resto da estrada, àquela de minha infância, que demorava tanto a chegar...

E os vôos internacionais?! Imagina, garantir um All Star vermelho, só debaixo de muita benção à madrinha e tias ricas, que poderiam se dar ao luxo de ir "buscar". Pós viagem corríamos para a casa do parente recém- chegado, atrás de notícias e do tão sonhado " souvenir". E precisávamos esperar, em geral, algumas semanas após a chegada, que era quando o filme de 24 ou 36 poses, o único comprovante efetivo de que realmente havia lugares longe daqui. Não haviam guias, revistas especializadas, o comprovante era a foto mal tirada e o relato do favorecido.

Essa era a parte rápida, porque em geral, das tantas poses algumas queimavam, outras a cabeça era amputada, salvas 2 ou 3 que com o monumento ou a paisagem de fundo, serviam de certificado de que ele realmente estivera alí. Aí sim, nos tornávamos dignos do presente tão sonhado, de causar inveja na escola no dia seguinte. Hoje em dia, um camelô é mais rápido que um Boing para reproduzir qualquer artigo de sucesso, de qualquer lugar do mundo, desde que lhe garanta bons trocados...

Com a internet, posso fazer meu roteiro deitada na cama de meu quarto e escolher a cama que melhor me aprouver com o simples toque de meu dedo. Posso encomendar nas lojas, encaminhar pro hotel e ser recepcionada por meus próprios presentes assim que chegar. Como uma boa família Jetson o fariatal qual em minha infãcia esbaldando-nos com sua desenvoltura no futuro.

O mundo perdeu as fronteiras, posso em segundos me comunicar com meu marido no Japão já no avião. O Skype me permite a proximidade da intimidade que temos no dia a dia. Posso curtir as viagens dos meus amigos via Facebook enquanto sigo-os em seus roteiros de férias...

Não sou do tipo que se opõe a modernidade, gosto e gozo das excentricidades que ela me dá. Mas hoje, encomprido as viagens comprando guias, fazendo roteiros virtuais em reais nos meus journals. Encomprido-as a medida do estreitamento que sites e GPS "minimizam" meu prazer.

E é do amor às viagens que surge este blog, a partir da escrita, que é onde eu gosto de contribuir, das imagens fotográficas, verdadeiros poemas pela lente de meu marido que nos permite revelar o que as palavras por si só não são capazes de traduzir, e da vivacidade de nossa filha, nosso Timão, munida de um amor igual ao nosso por viajar. Desbravar.

Aqui dividiremos os mapas de nossa diversão. Embarcaremos e desembarcaremos de nossos sonhos. Extraviaremos bagagens, esvaziaremos malas e, com sorte, nos enriqueceremos de cultura e novos vícios. Somos todos estrangeiros e de passagem nos resta seguir compartilhando nossa jornada. Como turistas do desejo nos colocamos de costas ao objeto almejado porque já vislumbramos a próxima viagem ou a paisagem adiante!
Ana

3 comentários:

Rachel Marques Ferreira disse...

Lindo texto Ana B! Digno de uma verdadeira viajante. Os verdadeiros viajantes prestam atenção não só nos monumentos turisticos. Vão mais a fundo, prestando atenção nas pessoas, nos sentimentos, nas cores, nos humores. Naquilo que realmente importa!

Anônimo disse...

Legal, Ana.
Também tenho saudade daquele tempo, do pastel, do banho de mangueira... tudo era tão gostoso e sem perigos. Hoje temos tanta tecnologia e sofremos com a insegurança.
Mas também podemos viajar para lugares mais distantes e podemos aprender com estas experiências.
Parabéns pelo blog.
beijos aos três.
Cecília

Elaine disse...

Ana, que delícia fazer este passeio com você!!! Pude acompanhar cada detalhe do seu caminho a São Roque ou São Vicente...
Não deixe de escrever, pois nos leva com você!
Beijos