sexta-feira, 14 de outubro de 2011

VIAGEM AO CÉU

Ao meu tio, que ao abandonar a vida terrestre, teria esquecido aqui, neste retiro, seu coração. Saudades e nosso amor eterno.



Folheando o álbum de fotos do batismo de minha filha achei a carta que fiz à minha família em meio a dor maior de perder um ente querido, carta de agradecimento e de reconhecimento a maior riqueza que temos: nossa família. Passaram-se 11 anos mas a dor é sempre urgente, basta evocá-la e é como se tivesse passado segundos. Meu tio prometeu pra mim que faria o batizado de minha filha fosse qual fosse seu estado, seria sua última missão como padre, com cancer em estágio avançado cumpriu até o fim  missão e promessa como só as pessoas de bem se atrevem.

Em seu álbum de batismo a primeira foto é de minha filha com ele que trás a força dos que vão chegando à família com a força dos que partem, como se pudéssemos selar um ciclo de continuidade. Embaixo dela escrevi: Ah Ju... mamãe lamenta que você não tenha tido a honra desse convívio. Nosso amado tio padre partiu 15 dias depois de seu batismo, que ele fez questão de fazer apesar das dores. Eis uma daquelas pessoas que realmente valem a pena, vou fazer questão de mantê-lo vivo pra sempre dentro da gente.

Quando quiser saber dele me pergunte, não vou cansar de repetir, leia esta carta que mamãe fez para ele e seus tios-avós e, fique atenta, os anjos descem à Terra de muitas formas, este veio em forma de tio, tão especial que Deus nem permitiu que ele se disfarçasse, escolheu-o a dedo para padre.

À querida tia Cida, papai, tio Luiz, tio Zé e tio Dito ("aquilo que o coração ama fica eterno")

Na verdade à todos os "Beus", mas agora quero me dirigir à alguns especiais, aos meus amados tios e pais, irmãos do nosso mais do que nunca anjinho tio padre. Aquietem-se, acalmem-se e lembrem-se da valentia dele quando por acaso quiserem se desesperar, não o façam por ele, nem em seu nome, pois desespero não foi em nenhum momento sua palavra de ordem, nem nos últimos minutos.Lembrou-se de sorrir e, se quisermos homenageá-lo façamos o mesmo, é certo que sorrir na adversidade é coisa para gênios e santos, talvez tivéssemos um ao nosso lado o tempo todo, que surpreendentemente foi se revelando melhor nas piores horas.

O tio teve cancer mas o cancer não teve o tio, é isto, vesgo, tomado de dores e de cansaço não excomungou a vista torta, recém adquirida, me disse que quando "enxergava duplo" procurava uma enfermeira bonita e logo via duas. O que muitos chamavam de "vesguice", "metástase" o tio enaltecia por "vista dupla" e logo tirava suas vantagens. Domingo, nas suas últimas doces horinhas, lembrou-se e esperou cada um de nós e guardou seu último suspiro com um sorriso, não se despediu, nem precisava, gente desse quilate não diz adeus, se perpetua. E foi isso que fez, batizando nossa Ju, a mais nova "Beu", instalada com carinho em Jesus e na família pelo tio, que com dignidade saiu da cama, penteou o seu cabelo e mostrou do início ao fim a força que tinha naquela batina. Padre Aluizio, João, Antonio ele era plural, com batina celebrou do início ao fim porque era de Deus, porque era forte. Porque foi um bravo.

Que orgulho tê-lo em convívio, o nosso tio padre nos deixou órfãos é verdade tio Dito, ele foi o pai de todos depois que o vovô morreu e segunda-feira, lá no fundo da igreja eu vi que foi pai além de nós, quem não era da família parecia também chorar a nossa dor.

Lembremos dele em festa, e foi assim que partiu, mostrando a língua para zombar de nós, de nossa pequenez.

Queria dizer que tenho orgulho de ser sobrinha de cada um de vocês, ser filha (no caso de meu pai) porque, embora afligidos pela dor da perda vocês foram valentes como ele. À doce tia Cida, que não verga, que doce exemplo, mãos firmes e palavras doces que bela mistura, você é a essência da vovó, uma "Beu" legítima, nossa santa guerreira, você terá porque é, nossa paz merecida.é bom vê-la em ação, poucas vezes temos o prazer de ver alguém feito de açúcar, o tio levará muito de você e, se esteve sereno é porque gozou de sua ternura.

Levará também a preocupação do tio Zé com o melhor. Com sua providencial caminha hospitalar apaziguou muitas de suas dores, domingo mesmo me pedia para movimentá-la e parecia mais aliviado pelas opções de posições. Ao papai, irmão amigo de todos os domingos, que levou a sério o "acuda o tio" (que ele gostava de repetir com rapidez para se divertir com o duplo sentido) trazendo dentistas especializados também para sanar, aplacar mais sofrimentos para ele. A doce e esperada massagenzinha do tio Luiz, a carinhosa carta do tio Dito...Vocês souberam e deram o melhor, a cura que os médicos não souberam receitar foi rapidamente remediada com todo esse amor de vocês. Portanto, ninguém se entristeça, o tio levou isso e muito mais certamente, porque a história que vocês compartilharam não começava aí, vinha dos anos da infância.

Nós os sobrinhos só pegamos carona nesta doçura de vocês e que possamos reproduzí-la nestas crianças que estão vindo por aí, orgulhosíssimas de todos vocês que sabem e nos ensinaram sobre a funçaõ de uma família.O tio, neste último batismo renova este elo, ele nos falou sobre a vida, nos fez olhar uns para os outros e mostrou a língua para a morte, porque de Deus sabia que estava e está para além dela.
Fiquemos com Deus e sejamos sempre unidos ele sempre e agora, para sempre, vai gostar disso.



"Acredito piamente que os anjos o esperaram e acredito que tenha se comportado com eles sem nenhuma cerimônia...ele era desses com direito a entrar no Céu sem pedir licença" - Carlos Drummond de Andrade

Um comentário:

Toda Graça Cerâmica disse...

Puxa vida, Ana!!!
Que texto mais lindo. Como tem acontecido semp´re que leio algum escrito seu, emocionei-me profundamente. Não conheci o tio Dito, o seu tio querido mas tomei a liberdade de ler tudo até o fim, tamanha a beleza que as suas palavras transbordam. Tenho certeza que o tio Dito recebeu cada linha sua com o coração em jubilo!
Obrigada por mais este presente!