Carlos Drummond de Andrade reflete lindamente sobre a passagem do ano, planos, considerações, num discurso profundo e delicadamente gentil e, em sua maneira doce de nos sacolejar, propõe à vida.
Como se fosse balanço em Os dias lindos/crônicas.
Lá se foi a primeira metade do ano, e já estamos folgados na segunda metade. Agosto continua o quê? Julho deu para balanço? Você fez alguma coisa do que planejava fazer neste ano? Claro que não. Fez, no máximo, aquilo que deixaram ou quiseram que você fizesse.
Sempre assim, e você já devia estar habituado. Como aliás está. Ou não? Por favor, não me venha com essa cara de inconformado de nascença. Já é do seu conhecimento, há muitas centenas de meses, que lhe cabe assistir a um espetáculo de que você, ao mesmo tempo, é comparsa mínimo. Espectador dos outros e de si mesmo: curiosa situação, né? a de tanta gente. Nem exceção você é. Não se envaideça. Não se melancolize.
É isso aí: dão-lhe direito de fazer planos. Reservam-lhe, até, quadra especial para isso. Não assumem, porém, o compromisso de deixar que você os execute. Mas podia ser de outro modo? Pense na barafunda que resultaria da realização simultânea (e conflitante) de todos os planos individuais. Cada um com seu esquema, sua quimera: a explosão disso tudo, hem?
Se preferir, bote a culpa nas estruturas e infra-estruturas, nos sistemas, no acaso, na sorte, em Deus. Poderes que impedem você de poder. Que podem por você. Aí está uma confortadora transferência de responsabilidade. Deixassem você solto, agindo, era aquela beleza. Vertigem boa: pensar em possíveis e impossíveis. No fundo, meu prezado, você tem é vocação para Deus. Mas o lugar está preenchido. À vista da frustração, só lhe resta ser um de seus (in)fiéis.
Mas assim como é dificílimo ser Deus, não é nada maneiro submeter-se à sua jurisdição. O código de proibições e obediências estica-se por mil volumes. A vida inteira não dá para a leitura. E a letra é tão miudinha! Em casa, na rua, no hospital, no espaço, em pensamento, você está sempre obedecendo a um parágrafo visível ou implícito. Ou o transgredindo. O sinal luminoso do cruzamento é muito mais que sinal luminoso: é sentença de morte, caso você não lhe dê a atenção exigida. Ou mesmo dando. O menor carimbo pressupõe regras invioláveis de conduta. O jogo da vida consiste, em parte, no estudo de como violá-las, simulando reverência.
Você esperneia, revolta-se- adianta? Mesmo sua revolta foi protocolada. O caso da maçã estava previsto. A serpente estava prevista. Prevista, a expulsão do Paraíso. A lição de alguns autores é que o Paraíso foi criado exatamente para o homem experimentar-lhe a privação. Da qual resultariam invenções, técnicas de compensação, poemas, sinfonias. Mas há também quem ache isso fábula de humor cinzento, descambando para o negro.
Acomodar-se, então, seria a receita? A razão estará com a minoria selecionada de quietistas? Ou o caminho que eles encontraram é demasiado simplório para ser um caminho, e , em vez de conduzir à solução, gira em redor do problema, acentuando a insolubilidade?
Devaneios. Como você devaneia, irmão! Quer ser e não ser sendo. Imagina o vazio, com a sua pessoinha lá dentro, escondida, resguardada, a se divertir com a imperícia dos outros, que vão aos trambolhões, expostos a chuva, granizo, fogo. Como se você também não participasse desse existir precário, de que só algumas ressonâncias chegam à publicidade, em situações-limite. Existir que, por ser universal, tem força de regra, torna-se normalidade.
Escusa de dar balanço, ou antes, balancete, nesta parte carcomida do ano. Os erros são justificáveis, de uma forma ou de outra. É, não deu. Os acertos, porque involuntários, o são menos. Não dependeram de você,confesse. De resto, que foi que dependeu de você: as marés, o câmbio, o desencontro das nações, a briga dos namorados, o amor revelado, a distensão, a enchente, a qualidade da vida?
Pense em outra coisa. Não impede que você reelabore planos para o restante do ano e até para o ano que vem. Esporte como outro qualquer. Experimente agosto. Voltam as aulas, os horários. Experimente (sempre) viver.