quinta-feira, 26 de maio de 2011

NO MEIO DE TUDO


Por Fabrício Carpinejar em, Borralheiro

"No guichê da companhia aérea, sempre avanço sobre o computador do atendente, espichando o queixo e exigindo:

Corredor ou janela, não me deixe no meio, não quero o meio, abomino o meio.

O funcionário explicou que reservaria o lugar desejado, sem problema, que me acalmasse. Com a emissão do bilhete, terminou minha principal ansiedade, o corpo já deslizava com rodinhas para a sala de embarque.

Demonstro preconceito mesmo com a localização, uma exigência pessoal em cada partida, tão importante quanto lembrar em acumular as milhagens no cartão.

O meio é o inferno do céu. Para quem viaja excessivamente como eu, é humilhante ficar prensado entre um que dorme e o outro que também dorme, desconhecidos prestes a desabar em meus ombros e fazer gargarejo do ar refrigerado. Comprovado cientificamente que o passageiro encurralado entre as pontas é incapaz de cochilar. Atordoado como uma babá cuidando de gêmeos. Sofre de hipertensão arterial, encolhido, cacto na chuva, pronto a se defender dos lapsos dos seus vizinhos. Não poderá se mexer durante  as longas horas do trajeto, muito menos trocar de livro e buscar seu laptop. Ou ele pega tudo de que necessita no momento em que entra, ou esquece, inútil mudar de ideia. Até para mijar, pensará como acordar seus obstáculos. A voz do comandante é a única abertura com o andamento da viagem.



No voo, descubro que fui enganado. Não havia meio, mas duas poltronas. Eu me vi lesado. Sem alguém pior do que eu, não estou melhor. A janela ou o corredor perdem importância. Precisava zombar de quem não conseguiria colocar o braço nos apoios, de quem sofreria a sensação interminável de sequestro, esmagado como um guarda-sol na garagem.

Aquela empresa estragou o luxo da comparação, arruinou minha brincadeira sádica, pôs abaixo a subdivisão de classe que existe na ala econômica.O meio era a chance de tirar leve vantagem na pobreza.

No corredor sem meio, estava duas vezes no meio. Representava ainda a metade que faltava. Se estivesse acompanhado da esposa, festejaria o formato: estremamente adequado, romântico, propício para preparar cabana e puxar o edredom. Sozinho, impossível gostar. Parecia que formava um casal com um barbudo anônimo, de óculos e franja retrô. Parecia amizade forçada por professora. Parecia um encontro arranjado por agência. Parecia um casamento por dote.

Eu e ele formando uma fileira inteira, independente, um encontro às escuras. Uma improvável mesa para dois no bandejão universitário. É muita intimidade para se dedicar a um lado só. Com três passageiros em bloco, é trabalho em grupo, a privacidade sobrevive. Dá para variar o pescoço. Com dois, é torcicolo, tarefa em dupla, chega a ser desconfortável não puxar conversa e não segurar o refrigerante para o repentino colega.

Tomo algumas precauções. Recuso o amendoim- não posso facilitar."


Voando baixo
por Ana

Temo avião.  Não há rodeios que disfarce o medo confessado, posso anestesiá-lo com meio comprimido de um calmante que cumpre seu efeito já de dentro da bolsa, mas suprimí-lo nunca. Essa idéia de ver o céu do lado de dentro já me soa mórbida, nada contra o céu pelo contrário mas nele gostaria de chegar com uns 90 e poucos anos e de preferência dormindo, acordada ainda tentaria uma segunda chance.

A idéia de tantas horas sem poder abrir a porta pra comprar umas frutas na estrada também não cai na minha simpatia, a janela minúscula, dupla e cerrada simula um claustro. Ok, se não é para abrir a porta, tomar uma lufada de ar pela janela entendo o recado e obedeço a reclusão, sou do tipo que não se mexe, tenho a fantasia de que posso desestabilizar o curso do bólido. Portanto coopero, se algo acontecer não fui eu, talvez seja também uma defesa de que tenho algum poder na ordem das coisas porque convenhamos, deixar tudo na mão do cara lá na frente, trancafiado na cabine sei lá em que condições físicas e psicológicas e de quem conhecemos unicamente a linda voz não basta para meu sossego, nunca me vali de poucos dados, gosto de saber.

Deveríamos exigir 5 minutos de conversa pra pelo menos sabermos senão a vida, o dia deste senhor. Me daria a opção de tentar outro voo; outro dia; validada pela impressão de seus argumentos mas não, como adolescentes entregamos nosso destino a quem só conhecemos  a bela voz.


Gosto de ver quem entra, associo algumas presenças como bons agouros sempre penso que se tem muitas crianças Deus há de poupá-las de sofrimentos precoces, preservação da espécie e aí entram também os  religiosos, grávidas e famílias enfim, todos que gozam de crédito na previdência divina. Já os famosos, políticos, e  emergentes me causam certo temor, antevejo a possibilidade das capas nos noticiários e revistas. Manchetes sensacionalistas, mais minutos de fama, tem muita gente que torce por isso ... Sei que ninguém vai antes da hora, mas compartilho do que uma vez disse o comediante Costinha, apavorado por avião como eu: "E se for a hora do piloto?" Com tantos assentos torço por todos mas a probabilidade de ser a hora de qualquer um me arrefece os ânimos.


Temo também o lanche, pra que perguntar qual das duas opções se o gosto de nada está incluso em qualquer uma das escolhas? Neste sentido também, pra que fecham a embalagem? Se já vem frio e se tanto faz o frango ou a massa é o mesmo gosto de plástico? Pra que lançar a dúvida num lugar que desde o começo me mostra que não tenho escolha.

Recolhido o engodo nos resta opções de filmes, jogos, música e me distraio logo com o objeto de tortura, que traça o trajeto da viagem com requintes de crueldade, assinalando: a distância, a altura e a velocidade do voo. Tal qual um alto funcionário da Nasa dedico-me exclusivamente à tais medidas checando-as de tempos em tempos com a precisão de um relógio suíço. O passageiro ao meu lado pode ficar tranquilo, não dormirei a noite inteira velando por todos, tampouco me mexerei  até que  se cumpra minha louvável tarefa, como uma religiosa carmelita, ocuparei-me determinada  do cumprimento do destino de todos, rarefeita tal qual o ar do avião minha respiração soa à zelo, refeita somente quando as rodas do avião assim como meus pés tocarem o solo.
Agora o voo é meu.

Um comentário:

Daniele disse...

Ana querida!!! Cheguei ao blog somente hoje... a correria impediu-me de fazê-lo antes, mas estou completamente envolta pelas histórias e pelas paisagens... difícil será parar a leitura ou escolher qual o próximo post que deverei desbravar! Estou AMANDO... Sempre admirei seu modo de escrever e descrever, é único... me faz sentí-la ao meu lado e isto é espetacular! Bjs,