quinta-feira, 1 de maio de 2014

Saber e experiência

Saber e experiência por Contardo Calligaris

Na sua próxima visita a um museu de arte, esqueça as obras e considere apenas os visitantes. Um bom número deles, talvez a maioria, não para diante de uma tela (por exemplo) sem antes ter lido a etiqueta com o nome do artista, título e data. Bom, eles querem se cultivar, saber quem pintou, quando e o quê. Mas, dessa forma, muitos acabam, sobretudo, limitando sua experiência: ao constatar que o autor lhes é desconhecido, mal olham para a tela e passam à obra seguinte; se o pintor for uma celebridade, contemplam com dedicação- as más-línguas dirão que assim eles sentem "autorizados" a parar e contemplar.



Os mais divertidos são os que adotam estratégias bizarras para dar uma espiada na etiqueta sem que o amigo que os acompanha se dê conta e logo clamam em voz alta, como se tivessem reconhecido a obra sem auxílio algum: "Aqui está o quadro de...". E há os grupos de turistas, forçados a correr de uma "obra-prima" a outra, atropelando obras menores, que talvez fossem para eles (quem sabe, só para eles) decisivas.


De fato, o saber pode aprimorar a nossa experiência estética; por exemplo, é bom apreciar uma tela de El Greco tendo conhecimento do fato de que ele pintou no século XVI, pois talvez, sem isso, sua incrível ousadia expressionista nos comova menos. Inversamente, se privilegiarmos demais o saber, tenderemos a nunca sair de caminhos já trilhados e, pior, a forçar a nossa experiência no molde do pouco que sabemos.

Na primeira vez em que visitei o Museu do Prado, em Madri, aos 14 anos, eu só queria ver a pequena sala onde estavam os quadros de Hieronymus Bosch. Ao entrar, fui hipnotizado pelo azul estranho e intenso do céu numa paisagem de Joachim Patinir, um pintor flamenco da mesma época, que eu desconhecia. Não li a etiqueta, "atribuí" a Bosch o quadro de Patinir  e saí feliz de ter descoberto "o meu Bosch preferido", que era tão diferente dos quadros de Bosch mais conhecidos e reproduzidos.
Se eu tivesse lido a etiqueta, provavelmente teria me sentido na obrigação de esquecer o céu de Patinir e destinar minha atenção só aos quadros de Bosch; em obséquio ao meu saber, que era modesto e trivial, teria renunciado a uma experiência cuja lembrança ainda me encanta.

Recentemente, visitei a exposição, no Palazzo Fortuny, em Veneza, que reúne obras e objetos de todas as épocas ao redor de um tema, "In-finitum", o qual, cá entre nós, é suficientemente vago para que qualquer coisa possa ser incluída na exposição. Instalações e quadros emprestados por museus e coleções particulares são misturados a objetos que enfeitavam a casa do estilista Mariano Fortuny, quando ele estava vivo. Há de tudo: de um Conceito espacial de Lucio Fontana a um banal ovo de avestruz. A regra  (inusitada e atrevida) das exposições do Palazzo Fortuny quer que os objetos não sejam identificados por etiqueta nenhuma, como se a gente estivesse visitando a casa de alguém. Para quem não aguenta o tranco, está disponível uma espécie de mapa que deveria permitir identificar os objetos expostos, mas cuidado: a duras penas.


Para alguns, assim a visita se torna uma caça ao tesouro (as crianças adoram). Outros rejeitam o mapa e testam a sua própria capacidade de atribuir algumas das obras a seu respectivo autor. Outros, ainda, fiéis ao espírito da exposição, percorrem os andares do palácio permitindo-se uma experiência estética e meditativa, sem se preocupar em saber direito quais são os objetos nos quais esbarram. O catálogo obedece ao mesmo princípio da exposição: começa com a reprodução das obras expostas, sem nada que as identifique. Seguem os ensaios e, só em apêndice, a lista das reproduções.

Antes de deixar o palácio, li o caderno em que os visitantes são convidados a escrever as suas impressões. O leque vai de "experiência única, por uma vez pensei e senti, em vez de querer saber quem fez o quê" até a (mais frequente) "os curadores estão bêbados? Não se entende nada no mapa. Que tal uma etiqueta de vez em quando?".

O que aconteceria em nós, visitantes, se os museus escondessem toda a informação sobre as obras expostas? 



Moral da história: o debate entre saber e experiência, por mais que seja um clássico do pensamento pedagógico, não tem solução. A falta de saber compromete e empobrece a experiência, mas, sem a liberdade da experiência imediata, o saber se torna chato, estupidamente repetitivo e, no fundo, frívolo. 




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